quarta-feira, 24 de março de 2010

Uma visão do Queimado

No domingo, dia, 21 de março, um grupo selecionado de cerca de 200 pessoas se encontrou no adro das ruínas da igreja de São José, no distrito serrano do Queimado, para exaltar os mártires do que se chamou de "Insurreição do Queimado", a maior revolta de escravos ocorrida no Espírito Santo. A revolta, ocorrida no dia dedicado a São José, em 19 de março de 1849, ainda hoje gera muitas dúvidas sobre sua motivação, embora o objetivo maior tenha sido a busca por cartas de alforria supostamente prometidas pelo frade capuchinho, Gregório Maria de Bene, um italiano que se dizia amigo da Imperatriz, Maria Cristina, também italiana, o que, segundo ele, lhe daria o poder de negociar a liberdade dos escravos que ajudassem a construir igreja na então freguezia. A história vem sendo contada por tradição oral tendo a maioria dos estudos acadêmicos se baseado numa monografia escrita por um jovem advogado de 25 anos, Afonso Cláudio de Freitas Rosa, nascido dez anos após o levante, filho de uma família escravocrata proprietária de uma grande fazenda no distrito de Mangaraí, distante poucos quilômetros do Queimado e onde se refugiaram muitos dos insurgentes após o fracasso da empreitada. Afonso Cláudio que viria a ser o primeiro governador do Espírito Santo no período republicano era um devotado abolicionista, inspirado pelos ventos que já então sopravam na época de seus estudos no Recife.

Sua tese se baseia desde então na tradição oral, embora tivesse tido a oportunidade entrevistar um dos insurgentes, Carlos, que escapou da sanha dos capitães do mato e das guerrilhas criadas para trucidar os insurrectos. Quando publicou sua monografia, em novembro de 1884, até mesmo todo o processo da devassa, que culminou com o julgamento de cinco líderes à forca, havia desparecido. Assim, Afonso Cláudio se conteve em manter a versão apresentado pelo advogado de defesa dos acusados, João Clímaco de Alvarenga Rangel, curiosamente a família que era proprietária de três importantes líderes do movimento, os irmãos Carlos, João Pequeno e Elisiário.

Parece paradoxal que um senhor de escravos decida incorporar o papel de advogado de defesa dos negros rebelados, enquanto toda a sociedade da província na época queria se vingar com sangue tamanha ousadia. João Clímaco era também um padre com visão humanista e ligado ao padroado, que não servia aos dogmas de Roma, mas aos interesses do império. Além disso, era uma dos mais brilhantes intelectuais da sua época, poeta, ajudou da organização da criação da Assembleia Provincial e foi o primeiro presidente da casa legislativa. Era um grande orador, embora limitado pelo lábio leporino e tinha posições próprias, tanto que foi determinante para seu futuro político seu posicionamento contra a regência, que estabeleceu a figura do príncipe regente (D. Pedro II), logo após a partida do seu pai de volta a Portugal.

Foi vencido e traído por seus pares, tendo sido vítima de golpes cruéis e perdido uma eleição por fraude na apuração. Desencantou-se com a vida pública, passou a dar aulas de latim no Liceu e deixou de viver em sua casa no centro de Vitória e passou a se interessar mais pelas atividades de sua fazenda, no Queimado, a qual havia recebido de herança e dividido entre oito irmãos. Na sua fazenda, de nome Peráu, plantava cana, fabricava açúcar, tinha um plantio de café, poucos escravos e algum gado a quem dava nome a cada cabeça. Teve duas filhas e é uma grande incógnita se eram filhas ou não de alguma escrava.

A tese apresentada por Clímaco no tribunal que tentava a absolvição de todos os 36 negros presos era de que a responsabilidade pelo movimento era exclusivamente do Frei Gregório que havia prometido a liberdade se os escravos o ajudassem a construir a igreja de São José, acusação que o frade se eximia. O Frade teve como pena sua expulsão da Província para em seguida ser enviado para serviços de catequese entre os índios do Amazonas, trabalho que era a razão de ele ter buscado ser missionário no Brasil. Lá, faleceu já idoso poucos anos depois, mas ficou registrado por alguns visitantes estrangeiros que ele era um importante mercador de crianças indígenas para comerciantes da região do Alto Rio Negro. Ou seja, vendia escravos infantis.

Clímaco foi derrotado pelo ódio e pelo medo dos brancos escravocratas e tomou uma decisão que mais o exilou da civilização: financiou a fuga dos seus escravos que se embrenharam pelas matas de Mangaraí e escaparam das buscas dos capitães do mato. Viveram e morreram de doenças tropicais, mas sempre auxiliados por Clímaco.

O relato das atrocidades cometidas contra os negros, a maioria crioulos, ou seja, eram nascidos no Brasil, além das torturas, maus tratos, açoites e execuções sumárias, mostra também casos de suicídio para abreviar a pena de viver nas condições de encarceramento na época, pior ainda que os dias de hoje. Consta que um deles, internado na Santa Casa de Misericórdia, após contrair tuberculose fruto das 500 chibatadas a que foi apenado, raspou com os dentes a cal a cobria as paredes do hospital no intuito de tirar sua própria vida. Pois vida já não mais havia pela frente.

A história da Insurreição do Queimado é rica em elementos dramáticos e vazios não devidamente esclarecidos que permitem releituras a favor de quem as conta. Na exaltação ocorrida este ano não foi diferente. Nos discursos que se alongaram por toda a manhã ensolarada do domingo muitos equívocos históricos foram difundidos como verdade, mas não empanaram a necessária rememoração dos eventos funestos de 1849 e 1850, quando dois dos cinco condenados à forca foram levados ao patíbulo, João da Viúva Monteiro e Chico Prego.

O evento de 2010, que comemorou 161 anos da insurreição, foi uma manifestação religiosa, com ritos católicos, umbandistas e do candomblé, além de apresentações de banda de congo, capoeira e maculelê. As fotos que acompanham o texto são a reprodução deste dia.


sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

O futuro que se espera para o TJ


A gestão de crises é uma ciência nova, associada à comunicação corporativa, mas que está diretamente ligada a administração (de empresas ou instituições públicas) e à verdade (leia-se ética). O Espírito Santo vive hoje uma crise grave gerada por elementos do Poder Judiciário, um poder poderosíssimo, (desculpem os leitores a redundância) que exige uma competente gestão de crise.

Em processo de sangramento público há um ano o Tribunal de Justiça é alvo de uma devassa, que ao abrir sua “caixa preta” (comprovação de venda de sentenças e, principalmente, da suspensão do sigilo processual) descortinou doutos desembargadores se engalfinhando em negociatas inomináveis. Aos capixabas foi escancarado o quanto desembargadores e juízes se veem acima do bem e do mal, (abaixo somente de Deus) a desafiar toda e qualquer ética e a usar expressões tão chulas como é comum na Casa de Passagem, por pura ganância, para defender o “seu”.

Analisada sob o prisma da gestão de crise, o fim dessa patuscada ainda está longe, na medida em que apenas um membro dessa camarilha foi julgado, faltando, pois, todos os demais (e não são poucos). Quanto tempo mais irá sangrar o egrégio TJ aos olhos atentos do cidadão contribuinte? O que fazer para o TJ recuperar sua imagem de ser a mais elevada corte de “justiça” do Estado?

Este cidadão ainda não se pronunciou, mas o governador do Estado já pediu tranquilidade à população. Nem mesmo o portal gazetaonline permitiu comentários em suas matérias sobre o caso, que poderiam mostrar o nível da indignação pública. Uma pena.

Ao espectador comum é possível que a crise seja esquecida um dia ou, para outros, seja sempre lembrada como marco, de tal forma que nunca mais na história se repita corrupção desta monta. De um jeito ou do outro a gestão de crise deve agir desde já, e não pode ser apenas uma atividade de comunicação corporativa, mas de todo um conjunto de forças interessadas em salvar a imagem do TJ, pois do contrário sobrará ao cidadão confiar apenas na justiça divina.

E as primeiras destas forças estão dentro do próprio TJ que julgarão seus pares. Não defendo o rito sumário, mas a agilidade dos processos é essencial para estancar o sangramento, que não pode se alongar por semanas ou meses. Na medicina o paciente que perde muito sangue corre o risco de chegar rapidamente ao óbito e aí nem gestão de crise dá jeito. Mas estancar o sangramento não é suficiente, precisa vir acompanhado de atitudes que possam curar tamanha ferida e cicatrizá-la adequadamente.

É certo que a Justiça capixaba se viu nessa situação. Por isso as ações futuras serão inéditas e vão carecer de homens íntegros, que estejam dispostos a realizar uma operação limpeza que fique muito clara aos olhos da sociedade capixaba.

A eles será requisitado questionar sobre a revisão das decisões dos doutos desembargadores e juízes envolvidos que, segundo as denúncias, sofreram interferências inconfessáveis. Rever as decisões será uma atitude importante para a imagem da corte, mas tão importante quanto será a verificação em instâncias inferiores se houve ou não uma contaminação por decantação. Afinal a corrupção costuma fazer escola e se reproduzir em outros níveis, como o “mensalão” no Poder Executivo.

Lembro-me de uma piada antiga que me foi contada pela querida Glecy Coutinho, que dizia que é preciso tomar cuidado ao dirigir, pois caso apareça uma bola rolando na avenida pode vir atrás não uma inocente criança, mas um fiscal da prefeitura ou um juiz.

Mudar a leitura inconsciente que a população faz do Poder Judiciário é tarefa árdua e precisa de homens sérios e fortes, que não deixem o barco naufragar, afinal a Justiça pode ser cega, mas nunca paralítica.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

O que ninguém quer ouvir (ou falar) do carnaval de Vitória

Lá se foi o tempo em que o desfile das escolas de samba era tão somente uma manifestação cultural brasileira. Hoje é uma indústria, que como todas as demais, tem como função principal auferir lucros e, no caso, também entreter a população. Quando falo em lucro não estou apenas me referindo a um objetivo financeiro. Com o carnaval é possível também obter dividendos negociais, pessoais, eleitorais e mercadológicos. Há uma cadeia de benefícios para quem investe na cultura. E o carnaval é o senhor dos dividendos não financeiros.
Ganham políticos, aspirantes a políticos, ganham empresários/fornecedores de serviços (desde o ambulante, indústria de bebidas, alimentação, serviços de decoração, roupas (fantasias), até a hora extra dos garis que limpam a passarela do samba após a passagem de uma escola). Eletricistas, seguranças, bailarinos, costureiras, sapateiros, fotógrafos, jurados, maquiadores, cabeleireiros, artistas, taxistas, motoristas e montadores são profissionais requisitados nesse período. Ganha também quem quer continuar a ser presidente de escola, quem quer derrubar presidente de escola; é possível conquistar good wiil (boa vontade) com quem é convidado para camarotes e com isso facilitar o fechamento de um bom negócio; pode-se ganhar um novo amigo e fixar a marca de uma empresa, associando-a ao espetáculo.

É, portanto uma cadeia de ganhos que se entrelaçam sucessivamente com o fim único de promover a satisfação de todos aqueles que se enternecem com o espetáculo carnavalesco.

Para que tudo isso funcione a contento é preciso nada mais nada menos do que muito profissionalismo. E não é isso que se observa no desfile das escolas de samba de Vitória em sua integralidade. É notório que houve um substancial crescimento na capacidade das escolas apresentarem um grande espetáculo, em especial das duas grandes escolas que se sucedem no campeonato dos últimos anos, a Jucutuquara e a MUG. Fora elas, as demais disputam de fato outro campeonato, com destaque para Barreiros, Piedade e Novo Império. Por que esse desnível? Porque a Jucutuquara e a MUG estão a alguns passos à frente? Para essas perguntas há apenas uma resposta: são elas que se profissionalizaram primeiro.

A organização do evento, a cargo da Liga das Escolas de Samba teve que correr atrás das escolas e buscar melhor eficiência. Contrata bambas da samba carioca e paulista para a realização de oficinas, assim como traz jurados “profissionais” das mesmas cidades, que hoje comercializam esses serviços. Uma profissionalização a “fórceps”.

A prefeitura de Vitória passou por uma experiência única. Do ocaso do samba, na administração Paulo Hartung, que suspendeu a realização dos desfiles, à retomada triunfal no Governo que Luiz Paulo, que o sucedeu, retomou a festa e inaugurou a antecipação da data dos desfiles, foi uma rica experiência. A PMV teve que reaprender a fazer o carnaval e todas as suas injunções, como a venda de ingressos, mesas e camarotes que só este ano funcionou a contento. Perdeu-se um tempo precioso de profissionalização.
Tudo isso mostra que o profissionalismo é a pedra fundamental de um evento dessa natureza. Pois, com ele crescem as escolas, oferece-se uma infraestrutura que seja aprovada com antecedência pelo Corpo de Bombeiros e que ordem dos desfiles seja cumprida, coisas que não ocorreram no desfile deste ano.

E o que dizer da transmissão pela TV Capixaba e TVe? Também um fiasco igual? Este ano a animosidade entre os dois canais foi flagrante. A apresentadora da TVe dizia: “Aqui não tem oba oba, temos conteúdo”, a que respondia o apresentador da Capixaba: “nossa transmissão não dá sono e não temos paixão”. E o que se viu ou não se viu, ou se ouviu ou não se ouviu foi uma catástrofe. Da emissora que tem conteúdo não se ouvia muito bem o samba enredo e da que não dava sono, muito por conta da gritaria insana do apresentador, via-se um desfile despedaçado, com imagens que não sustentavam a narração frágil e que não permitiam ao espectador compreender a narrativa do desfile. Também no caso das TVs o profissionalismo padece.

Chegou a hora de união de forças. O Sambão do Povo precisa estar pronto para o carnaval com antecedência. As escolas precisam voltar a ser divididas em categorias para incentivar o estabelecimento de metas e o surgimento de novas agremiações e a transmissão pela TV precisa discutir um pool organizado. Tudo para que os dividendos possam de fato ser obtidos.

sábado, 23 de janeiro de 2010

Flor de Maio fecha em janeiro


Comunico com pesar o falecimento de parcela preciosa da história do comércio do Espírito Santo com o fechamento da Chapelaria Flor de Maio, neste mês de janeiro de 2010, aos 115 anos de idade. Sob o silêncio da Federação do Comércio, da Associação Comercial de Vitória e Clube dos Lojistas, a omissão de autoridades e o desleixo dos proprietários, a loja sucumbiu à “modernidade”. Por suas portas, a loja contemplou a história de Vitória passar à sua frente, rompendo duas passagens de século, dos mais ricos para o comércio capixaba.

A Flor de Maio era a história viva do comércio, arrisco dizer, do Espírito Santo. Não foi dada a ela a oportunidade do marketing moderno mostrar que, com uma boa estratégia, o tradicional pode conviver e dar lucro com a modernidade. Mais uma vez Vitória perde uma referência. Mais uma vez venceu a tosca visão de que o moderno deve necessariamente sepultar o passado. Mais uma vez perdemos a oportunidade de provar que o crescimento e o progresso não devem estar associados ao abandono da tradição. Este é o meu lamento, e meu grito contra a prática de destruição da história da cidade de Vitória.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

A Polinésia é aqui?

Tenho uma amiga que desde muito criança ficava atenta a tudo o que se relacionava à língua inglesa. Ela morava num casarão na Praia do Canto cuja arquitetura lembrava aquelas mansões americanas. Ela se sentia diferente das colegas da escola porque sabia falar “yes” e “good bye” ainda em tenra idade. Na adolescência virou uma espécie de obsessão. Estudou inglês numa escola privada, ampliou enormemente seu vocabulário e mantinha como meta conhecer os Estados Unidos da América. Quando morou no Rio de Janeiro para completar os estudos ela pintou os cabelos de um dourado que chamava de “blond” e adorava fazer amizade com estrangeiros para exercitar seu conhecimento e indicar passeios inesquecíveis na cidade maravilhosa.
      Conto esta estória para lembrar a forma como os brasileiros costumam tratar a própria língua. É comum ouvir que os brasileiros se orgulham da sua música, comida, alegria e coisas mais tangíveis como as belas mulheres e o seu tom de pele, as praias e o futebol, mas ninguém fala especificamente da língua. Elemento diferenciador, a língua não é tão somente uma associação de fonemas que intercalados formam um sentido inteligível, mas também, e principalmente, um modo de pensar, de ver o mundo, de traduzi-lo. “A língua é minha pátria”, como diria o poeta, e pode muito bem representar um estado de ânimo, de autoestima, para mais ou para menos, e antes de tudo expor sua complexão cultural.
        Não quero aqui me enveredar por uma discussão ampla e exaustiva sobre a atualização da língua viva que ao longo do tempo toma novos formatos, como o “vosmicê”, que virou meramente “vc” nas telas das mensagens de texto enviadas pela Internet, nem mesmo as formas e modelos abreviatórios usados nos torpedos dos telefones celulares ou “sites” de relacionamento. Quero sim visitar os modismos que ocorrem em temporalidade cíclica que tomam o país inteiro e funcionam como mensagens cifradas, mesmo equivocadas, mas aceitas pela maioria.
        Lembro-me que numa entrevista a diva Fernanda Montenegro vociferava contra o uso equivocado do gerúndio, que levava as pessoas a “estarem cometendo” uma agressão à língua, tanto quanto as traduções mal feitas em manuais de eletrodomésticos. Quantas vezes ouvimos de atendentes de telemarketing: “vou estar transferindo”; de entrevistados em rádios e televisão: “vamos estar providenciando” e, na vida real: “pretendo estar conseguindo passar no vestibular para o curso de letras”. Este uso irregular do gerúndio está em desuso, a moda agora é outra: começar a resposta a uma pergunta com a interjeição “então”, segundo o Houaiss, usado como uma voz que serve para animar. Mas eu diria mais, como uma voz concordante com a pergunta, que deriva do “então, pois é”. Uma variação típica dos novos tempos em que se estabeleceu uma só verdade em que todos acreditam e defendem, em que não há mais o contraditório, a discordância, a oposição. Então é a bola da vez.
        Mas o que considero mais grave é quando se atropela a tradição. Dizem que um prefeito do município da Serra, que compõe a Grande Vitória, baixou um decreto que obrigava que quando alguém se referisse ao município, deveria ser precedido da preposição “de” e não “da”. Assim, teríamos que dizer: município “de Serra”, o que fatalmente nos imporia o cacófato “ele começou como político em Serra”. Daí a pergunta para quem ouve: Ou começa ou encerra? Mas como a língua não se muda por decreto, mas fazem-se acordos, como da nova ortografia, vale sempre respeitar o que diz a tradição. O tal município, um dia, lá no século XVI, mais precisamente em 8 de dezembro de 1556, por obra e graça do padre jesuíta Braz Lourenço, foi denominado Aldeia de Nossa Senhora da Conceição da Serra do Mestre Álvaro, para denominar o aldeamento de índios Temininó, vindos do Rio de Janeiro para ocupar as terras capixabas, na tentativa de expulsar os Tapuias que não falavam Tupi e resistiam a dominação portuguesa.
        O município da Serra tem uma vasta e rica história que não pode ser desprezada, nem por decreto nem pela mídia. É muito comum em noticiários e até em peças publicitárias alguém seguir as regras do prefeito ou tentar diferenciar o município da região da serra, como sinônimo de montanha. As serras gaúchas são assim chamadas pelos nativos, como as serras do Espírito Santo são chamadas de montanhas pelos seus nativos. Assim, para os capixabas, não há porque negar suas raízes e seguir exemplos externos ou decretados. Umas das melhores coisas que vieram com a globalização é o fortalecimento das culturas locais, como forma de manter um contraponto, uma identidade própria que não se confunde com outras culturas. Só assim seremos nós mesmos, o que não podemos abrir mão de forma nenhuma, sob pena de sermos confundidos com uma civilização da Polinésia.
        Ah! Não poderia esquecer. Minha amiga conheceu os Estados Unidos, desde o Havaí até a costa leste e as Keys da Flórida e hoje fala um vernáculo quase escorreito tanto de português quanto de inglês.




domingo, 17 de janeiro de 2010

Deus e a Terra

Este é o título deste monumental artigo escrito por Hélio Schwartsman que republico aqui pela sua relevância.

Grandes catástrofes naturais como a que se abateu sobre o Haiti constituem uma espécie de experimento teológico natural. Não é necessário PhD em filosofia para colocar-se a pergunta que não quer calar: se existe um Deus onisciente, onipotente e benevolente, como ele pôde produzir --ou pelo menos permitir-- tanto sofrimento?

O problema da teodiceia, que assombra os filósofos há séculos, já foi aplicado a movimentos de placas tectônicas. Em fins do século 18, época em que o hoje miserável Haiti ainda era a "pérola das Antilhas", a mais rica colônia do Novo Mundo, Voltaire e Rousseau se engalfinhavam na célebre polêmica do terremoto de Lisboa, que já explorei em outras colunas, mas retomo aqui para que a tragédia haitiana pelo menos nos forneça material de reflexão.

Em 1755, mais precisamente às 9h40 do dia 1º de novembro, um grande sismo atingiu a cidade de Lisboa, então a quarta maior da Europa. Era Dia de Todos os Santos e, por isso, a maioria dos moradores estava na missa. Muitos morreram sob os escombros de igrejas que ruíram. As áreas baixas da cidade foram rapidamente engolidas por ondas gigantescas. Como se não bastasse, seguiu-se um terrível incêndio, que destruiu boa parte do que havia sido poupado pelo tremor. O fogo durou seis dias. O total de mortos ficou entre 30 mil e 70 mil.

Além dos alicerces de Lisboa esse megassismo fez tremer o fervilhante mundo intelectual do século 18. Vinte e três dias após a tragédia, Voltaire, o pseudônimo de François-Marie Arouet (1694-1778), publicou seu "Poema sobre o Desastre de Lisboa", cujo subtítulo é: "ou o exame do axioma: 'tudo está bem'". De seus versos emerge uma boa dose de indignação: "É preciso dizer: o mal está na terra:/ Seu princípio secreto é desconhecido/ Do autor de todo bem terá ele partido?".

Com efeito, a contradição entre a ideia de um bem absoluto e o mal visível é conhecida desde a Antiguidade. Atribui-se a Epicuro o seguinte dilema: Se Deus é bom e onipotente, não poderia haver mal sobre a Terra; havendo, ou Deus não quer acabar com o mal --e não é benevolente-- ou não pode fazê-lo --e não é onipotente. (Poderíamos, é verdade, reduzir o dilema a um problema de linguagem e, portanto, a um falso paradoxo: a questão é insolúvel porque foi mal formulada; não posso exigir nem de um Ser Supremo que aja contraditoriamente. Mas, com essa interpretação, perderíamos toda a graça do debate metafísico).

A dificuldade levou teólogos e filósofos cristãos a reduzir o mal a uma aparência. Quando achamos que algo representa o mal, na verdade, estamos fazendo uma leitura equivocada do fenômeno. Nós, humanos, não podemos, como Deus, enxergar as coisas em suas reais dimensões. Não podemos dizer que alguém sofre injustamente se não conhecemos, como Deus, todos os seus pecados. Tampouco sabemos quais são os planos divinos para o futuro. O que hoje parece o mal poderá ser compensado no futuro. Depois, não devemos nos limitar ao plano individual. Deus pensa grande --ocupa-se de toda a Criação--, e certos sacrifícios são necessários.

O texto de Voltaire é, na verdade, uma crítica a sistemas que postulam um certo otimismo filosófico. Os alvos são o alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) e, em menor escala, o inglês Alexander Pope (1688-1744), que versificou e popularizou ideias do alemão. Num resumo extremamente grosseiro, o filósofo tedesco leva o racionalismo teológico às últimas consequências e postula que o mundo em que vivemos é o melhor dos mundos possíveis. O Deus sábio e necessário --e, portanto, existente--, dentre todos os mundos possíveis, criou o melhor de todos. Tudo está bem.

Quem leu o "Poema" e não gostou foi Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). A resposta veio em 18 de agosto de 1756 sob a forma de carta, a "Lettre sur la Providence". Aí o bom Jean-Jacques, para isentar o bom Deus e a gentil mãe-natureza de toda a culpa, prefere atribuí-la aos homens. Como bem observa o cidadão genebrino, não foi a natureza que, numa área relativamente exígua "reuniu 20 mil casas de seis ou sete andares". Ele vai ainda mais além e pergunta-se "quantos infelizes pereceram neste desastre, porque quiseram pegar, um suas roupas, outro, sua papelada, outro, seu dinheiro?".

Embora hoje pareça óbvio que as consequências de um terremoto --ou mesmo de um furacão, uma enchente e vários outros desastres "naturais"-- são inseparáveis do tipo de sociedade na qual ocorre a tragédia, essa era uma ideia original no século 18. Vários autores veem aí o surgimento da abordagem sociológica desse tipo de fenômeno.

De um modo geral, concordo com Voltaire e Rousseau. Sei que, com essa confissão, corro o risco de ser acusado de tucano, mas não creio que as duas leituras sejam mutuamente excludentes. É perfeitamente possível concluir que erros na ocupação do solo respondem por boa parte dos estragos provocados por terremotos e, ao mesmo tempo, que a ideia de uma Providência benfazeja e onipotente apresenta problemas.

O interessante aqui é que, quaisquer que sejam nossas inclinações, não ficamos indiferentes a tragédias como a do Haiti e rapidamente nos colocamos a procurar respostas. De algum modo, precisamos encontrar explicações --e de preferência culpados-- que julguemos satisfatórias para tamanho desperdício de vidas. Daí que buscamos identificar padrões, sejam eles herméticos, como no caso dos insondáveis planos de Deus, ou plenamente racionais, como na hipótese de mau uso do terreno. Se há uma ideia que se nos afigura insuportável é a de que tanta destruição possa ser apenas fruto de um movimento aleatório e imprevisível. É justamente para combater a ideia de que o acaso (e com ele a ausência de propósito) está no comando que, suspeito, criamos a noção de Deus.

Hélio Schwartsman, 44, é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.
E-mail: helio@uol.com.br

O dia em que Vitória tremeu

A tragédia provocada pelo terremoto de magnitude de 7,0 graus na escala Richter ocorrido no Haiti, me trouxe a lembrança de um abalo ocorrido em Vitória com magnitude 6,3, graus, o segundo maior já documentado no Brasil, segundo a UnB, que muita gente desconhece ou esqueceu. O epicentro foi localizado a 300 quilômetros da costa capixaba na altura de Vitória. Eram quase 11 horas da noite de 28 de fevereiro de 1955. Não havia televisão e as pessoas costumavam dormir cedo.

        O susto acordou muitos moradores de Vitória que foram para as ruas e praças, vestidos com pijama e camisola, em busca de uma explicação plausível. O tremor se espraiou por Vila Velha, Cariacica, Guarapari e Colatina e levou a população a especular inúmeras possibilidades. Militares alojados no Quartel da PM em Maruípe acordados pelos movimentos das paredes, viram pela janela uma bola vermelha de fogo no horizonte da Praia de Camburi, para moradores da Praia da Costa a bola era alaranjada. Uma explosão vulcânica? Um meteorito caíra no mar?
        Um bom registro desse dia está na reportagem do saudoso José Luiz Holzmeister, um dos melhores jornalistas de sua geração, que varou a madrugada para levantar com apuro os fatos daquela noite, mesmo com as limitadas condições da época, em que a redação do jornal tinha apenas três aparelhos telefônicos. Tudo a tempo de publicar a matéria no dia seguinte. Um exemplo de dedicação e respeito aos leitores.


Veja a matéria na íntegra:



A terra tremeu em Vitória


FENÔMENO SÍSMICO OU METEÓRICO? – “ERA COMO UMA IMENSA BOLA DE FOGO, DE UM FOGO COR ALARANJADO, QUE SE MOVIMENTAVA” – TODA A CIDADE SOBRESSALTADA COM UM ESTRANHO TREMOR QUE PARECIA VIR DAS ENTRANHAS, QUE DUROU ALGUNS SEGUNDOS – O PRIMEIRO AVISO VEIO DE VILA VELHA – SEGUIRAM-SE CENTENAS, ENTRE OS QUAIS, DOIS DO INTERIOR - NOSSA REPORTAGEM PERCORREU BAIRROS E MUNICÍPIOS VIZINHOS – UMA EXPLICAÇÃO QUE NOS PARECEU ACERTADA – TAMBÉM EM GUARAPARI E COLATINA FORAM SENTIDOS OS EFEITOS DO TREMOR.


Reportagem de José Luiz Holzmeister


       Eram mais ou menos 22 horas e 55 minutos quando um telefonema de um colega, Enio Pereira, residente em Vila Velha nos dizia que a terra havia tremido ali. A princípio pensamos ser brincadeira. Mas a afirmativa perdurava e então resolvemos tomar as primeira notas e entrar em ligação com outros moradores naquela localidade. Desligado o telefone, outra chamada, agora da residência do Sr. Schnaider, contando-nos a mesma cousa. De acordo com a segunda comunicação, que confirmava plenamente a do repórter Enio Pereira, um tremor de terra de alguns segundos foi sentido onde se notava claramente portas e janelas tremerem à rua Henrique Moscoso. A população da cidade vizinha, sobressaltada, deixava suas casas, enchendo as ruas. Os mais variados trajes se podiam notar.
Dezenas de outros telefonemas
       Nesta altura, já os três aparelhos telefônicos da redação já não davam contas. Eram comunicações de todos os recantos. De Itaquari, do repórter Gualter Golçalves; da Praia do Canto, do dr, Diomar e do Sr, Alberto Busato; de Santo Antonio , do Sr, Elias Vieira, motorista profissional; do Morro da piedade, do vereador Raulino Golçalves, entre outros....
Comissões de moradores de bairros
       Estávamos na azáfama de atender telefones quando formos visitados por várias comissões de moradores de bairros distantes e morros adjacentes. Entre os visitantes, pudemos mais calmamente conversar com o Sr. Jarbas Miranda, residente em Santo Antônio, que veio acompanhado dos srs. Jair Có, Luiz Carlos Bastos, Rubens Azevedo e Paulo Lourosa. Disse nos que estava no interior de sua casa quando sentiu algo estranho como um tremor . Segundo depois, agira com mais intensidade notou que porta e janelas de sua casa tremiam. Não resistiu e saiu. Do lado de fora notou que numerosas pessoas fazia a mesma cousa. Um pânico geral tomou conta de todo o bairro de Santo Antônio e minutos depois ruas e praças se encheram de gente que procurava saber o que havia. Um estado de apatia a todos envolvia. Sentiu o mesmo fenômeno ocorrido com a explosão de Caratoíra. Mas desta vez. Fora um tremor de terra, no duro.
Novamente o vereador Raulino Gonçalves
       Novamente pudemos palestrar com o vereador Raulino Gonçalves. Um dos primeiros a nos telefonas. Mais calmo, o edil vitoriense nos contou que estava em seu gabinete quando notou que lápis, réguas e todos os apetrechos de seus desenhos dançavam sobre a cartolina. Sua menina de 10 anos disse: Pai, a cama está tremendo”. Portas e janelas, conclui nosso informante, tremiam como bambus ao vento. Abri as janelas e notei que meus vizinhos notaram o mesmo fenômeno e dentro me pouco todo o morro da Piedade estava cordado, com o povo nas ruas sobressaltado.
Nossa reportagem percorre os bairros
       Tão logo recebemos os primeiros telefonemas nossa reportagem se pôs em campo, percorrendo todos os bairros da capital, de Praia do Canto a Santo Antônio, de Maruípe aos Barreiros, alongando-se por Jardim América, Itaquari, Campo Grande, Itacibá, no município de Cariacica; Cobilândia, Paul, Argolas e Vila Velha, no município do Espírito Santo e pode constatar que o fenômeno foi sentido em todos esses locais. Alguns notaram no horizonte, para os lados do mar, uma espécie de bola de fogo, de uma cor alaranjada.
Também em Guarapari e Colatina
       Enquanto nossa reportagem percorria as ruas centrais, bairros e distritos, procuramos nos comunicar com Colatina, Guarapari e outras cidades. Apenas dessas duas recebemos notícias e essas esclarecendo que ali o fato fora notado. Em Colatina, tanto do lado da cidade como do lado norte foi pressentido o tremor por várias pessoas, tendo em Guarapari, numa certa casa residencial, uma cama percorrido mais de um metro pelo tremor.
Fenômeno Sísmico ou Meteórico?
       Para o fato há três versões diferentes. A primeiro seria uma explosão violenta como a ocorrida há tempos nos depósitos do DER em Volta de Caratoíra. Esse fenômeno foi posto à margem, pois nada conseguimos descobrir em nossa peregrinação pelos quatro cantos da cidade e de nada dizerem notícias mais longínquas. Restam portanto, duas últimas: ou um fenômeno sísmico, um tremor de terra, ocasionado segundo os geólogos, devido a deslocações da crosta terrestre nas regiões instaláveis, mesmo as que estão associadas a erupções vulcânicas, ao longo das cadeias recentes, e que se formaram depois das deslocações da era terciária, onde se agrupam as regiões de maior sismicidade. Sendo o Brasil um dos países do mundo que menos mudaram de longas épocas a esta parte devendo, pois, a priori ser indenes de tremores de terra, embora se tenha em 1901 registrado em Bonsucesso uma série de abalos, explicando-se este sismos pelo fato de que a Serra Gral é o escarpamento final de um planalto de grés. Desmente ser o Brasil imune de tremores de terra o professor Brannei, que apresentou uma lista de cinquenta sismos, o primeiro verificado em 1560, embora se duvide da sua autenticidade; ou finalmente por causa de algum meteoro a a exemplo do celebre Bedengó que se encontra no Museu Nacional, caído no sul da Bahia, e cujos efeitos, segundo historiadores, foram sentidos a centenas de quilômetros em círculo.
Uma explicação aceitável
       Estávamos concluindo esta rápida reportagem sobre o fato mais sensacional já ocorrido em toda a história do Espírito Santo, no setor dos fenômenos, quando um telefonema nos pôs em comunicação com o Tenente Décio Nascimento, oficial de dia do Quartel de Maruípe. Contou-nos aquele oficial da Polícia que estava no seu alojamento quando foi alarmado pelo tropel de dezenas de recrutas que assustados, deixaram o prédio onde estava, em desabalada correria. Interrogados disseram que o prédio estava tremendo. Acompanhado do sargento Ajudante, o oficial foi ao local e ao olhar em uma das janelas, justamente onde os soldados diziam ter as paredes tremido, para o lado da praia de Camburi, viu uma bola de cor um tanto esquisita, avermelhada, que se movimentava, Chamou o sargento Rubens e este ainda pode ver a bola nas reentrâncias de montanhas sumindo-se por detrás de um morro. Segundo nosso informante diversas paredes do quartel, de largura pouco comuns, ficaram rachadas, vendo-se pelo chão a caliça desprendida.
       Como veem nossos leitores, o fenômeno ontem em Vitória, e mesmo em várias parte do Estado, é inédito no Espírito Santo, havendo suposições diversas. Teria sido uma explosão distante? Estaremos nós sobre uma região vulcânica? Ou foi algum meteoro que se desprendeu? Com as palavras os cientistas.