terça-feira, 19 de janeiro de 2010

A Polinésia é aqui?

Tenho uma amiga que desde muito criança ficava atenta a tudo o que se relacionava à língua inglesa. Ela morava num casarão na Praia do Canto cuja arquitetura lembrava aquelas mansões americanas. Ela se sentia diferente das colegas da escola porque sabia falar “yes” e “good bye” ainda em tenra idade. Na adolescência virou uma espécie de obsessão. Estudou inglês numa escola privada, ampliou enormemente seu vocabulário e mantinha como meta conhecer os Estados Unidos da América. Quando morou no Rio de Janeiro para completar os estudos ela pintou os cabelos de um dourado que chamava de “blond” e adorava fazer amizade com estrangeiros para exercitar seu conhecimento e indicar passeios inesquecíveis na cidade maravilhosa.
      Conto esta estória para lembrar a forma como os brasileiros costumam tratar a própria língua. É comum ouvir que os brasileiros se orgulham da sua música, comida, alegria e coisas mais tangíveis como as belas mulheres e o seu tom de pele, as praias e o futebol, mas ninguém fala especificamente da língua. Elemento diferenciador, a língua não é tão somente uma associação de fonemas que intercalados formam um sentido inteligível, mas também, e principalmente, um modo de pensar, de ver o mundo, de traduzi-lo. “A língua é minha pátria”, como diria o poeta, e pode muito bem representar um estado de ânimo, de autoestima, para mais ou para menos, e antes de tudo expor sua complexão cultural.
        Não quero aqui me enveredar por uma discussão ampla e exaustiva sobre a atualização da língua viva que ao longo do tempo toma novos formatos, como o “vosmicê”, que virou meramente “vc” nas telas das mensagens de texto enviadas pela Internet, nem mesmo as formas e modelos abreviatórios usados nos torpedos dos telefones celulares ou “sites” de relacionamento. Quero sim visitar os modismos que ocorrem em temporalidade cíclica que tomam o país inteiro e funcionam como mensagens cifradas, mesmo equivocadas, mas aceitas pela maioria.
        Lembro-me que numa entrevista a diva Fernanda Montenegro vociferava contra o uso equivocado do gerúndio, que levava as pessoas a “estarem cometendo” uma agressão à língua, tanto quanto as traduções mal feitas em manuais de eletrodomésticos. Quantas vezes ouvimos de atendentes de telemarketing: “vou estar transferindo”; de entrevistados em rádios e televisão: “vamos estar providenciando” e, na vida real: “pretendo estar conseguindo passar no vestibular para o curso de letras”. Este uso irregular do gerúndio está em desuso, a moda agora é outra: começar a resposta a uma pergunta com a interjeição “então”, segundo o Houaiss, usado como uma voz que serve para animar. Mas eu diria mais, como uma voz concordante com a pergunta, que deriva do “então, pois é”. Uma variação típica dos novos tempos em que se estabeleceu uma só verdade em que todos acreditam e defendem, em que não há mais o contraditório, a discordância, a oposição. Então é a bola da vez.
        Mas o que considero mais grave é quando se atropela a tradição. Dizem que um prefeito do município da Serra, que compõe a Grande Vitória, baixou um decreto que obrigava que quando alguém se referisse ao município, deveria ser precedido da preposição “de” e não “da”. Assim, teríamos que dizer: município “de Serra”, o que fatalmente nos imporia o cacófato “ele começou como político em Serra”. Daí a pergunta para quem ouve: Ou começa ou encerra? Mas como a língua não se muda por decreto, mas fazem-se acordos, como da nova ortografia, vale sempre respeitar o que diz a tradição. O tal município, um dia, lá no século XVI, mais precisamente em 8 de dezembro de 1556, por obra e graça do padre jesuíta Braz Lourenço, foi denominado Aldeia de Nossa Senhora da Conceição da Serra do Mestre Álvaro, para denominar o aldeamento de índios Temininó, vindos do Rio de Janeiro para ocupar as terras capixabas, na tentativa de expulsar os Tapuias que não falavam Tupi e resistiam a dominação portuguesa.
        O município da Serra tem uma vasta e rica história que não pode ser desprezada, nem por decreto nem pela mídia. É muito comum em noticiários e até em peças publicitárias alguém seguir as regras do prefeito ou tentar diferenciar o município da região da serra, como sinônimo de montanha. As serras gaúchas são assim chamadas pelos nativos, como as serras do Espírito Santo são chamadas de montanhas pelos seus nativos. Assim, para os capixabas, não há porque negar suas raízes e seguir exemplos externos ou decretados. Umas das melhores coisas que vieram com a globalização é o fortalecimento das culturas locais, como forma de manter um contraponto, uma identidade própria que não se confunde com outras culturas. Só assim seremos nós mesmos, o que não podemos abrir mão de forma nenhuma, sob pena de sermos confundidos com uma civilização da Polinésia.
        Ah! Não poderia esquecer. Minha amiga conheceu os Estados Unidos, desde o Havaí até a costa leste e as Keys da Flórida e hoje fala um vernáculo quase escorreito tanto de português quanto de inglês.




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