quarta-feira, 24 de março de 2010

Uma visão do Queimado

No domingo, dia, 21 de março, um grupo selecionado de cerca de 200 pessoas se encontrou no adro das ruínas da igreja de São José, no distrito serrano do Queimado, para exaltar os mártires do que se chamou de "Insurreição do Queimado", a maior revolta de escravos ocorrida no Espírito Santo. A revolta, ocorrida no dia dedicado a São José, em 19 de março de 1849, ainda hoje gera muitas dúvidas sobre sua motivação, embora o objetivo maior tenha sido a busca por cartas de alforria supostamente prometidas pelo frade capuchinho, Gregório Maria de Bene, um italiano que se dizia amigo da Imperatriz, Maria Cristina, também italiana, o que, segundo ele, lhe daria o poder de negociar a liberdade dos escravos que ajudassem a construir igreja na então freguezia. A história vem sendo contada por tradição oral tendo a maioria dos estudos acadêmicos se baseado numa monografia escrita por um jovem advogado de 25 anos, Afonso Cláudio de Freitas Rosa, nascido dez anos após o levante, filho de uma família escravocrata proprietária de uma grande fazenda no distrito de Mangaraí, distante poucos quilômetros do Queimado e onde se refugiaram muitos dos insurgentes após o fracasso da empreitada. Afonso Cláudio que viria a ser o primeiro governador do Espírito Santo no período republicano era um devotado abolicionista, inspirado pelos ventos que já então sopravam na época de seus estudos no Recife.

Sua tese se baseia desde então na tradição oral, embora tivesse tido a oportunidade entrevistar um dos insurgentes, Carlos, que escapou da sanha dos capitães do mato e das guerrilhas criadas para trucidar os insurrectos. Quando publicou sua monografia, em novembro de 1884, até mesmo todo o processo da devassa, que culminou com o julgamento de cinco líderes à forca, havia desparecido. Assim, Afonso Cláudio se conteve em manter a versão apresentado pelo advogado de defesa dos acusados, João Clímaco de Alvarenga Rangel, curiosamente a família que era proprietária de três importantes líderes do movimento, os irmãos Carlos, João Pequeno e Elisiário.

Parece paradoxal que um senhor de escravos decida incorporar o papel de advogado de defesa dos negros rebelados, enquanto toda a sociedade da província na época queria se vingar com sangue tamanha ousadia. João Clímaco era também um padre com visão humanista e ligado ao padroado, que não servia aos dogmas de Roma, mas aos interesses do império. Além disso, era uma dos mais brilhantes intelectuais da sua época, poeta, ajudou da organização da criação da Assembleia Provincial e foi o primeiro presidente da casa legislativa. Era um grande orador, embora limitado pelo lábio leporino e tinha posições próprias, tanto que foi determinante para seu futuro político seu posicionamento contra a regência, que estabeleceu a figura do príncipe regente (D. Pedro II), logo após a partida do seu pai de volta a Portugal.

Foi vencido e traído por seus pares, tendo sido vítima de golpes cruéis e perdido uma eleição por fraude na apuração. Desencantou-se com a vida pública, passou a dar aulas de latim no Liceu e deixou de viver em sua casa no centro de Vitória e passou a se interessar mais pelas atividades de sua fazenda, no Queimado, a qual havia recebido de herança e dividido entre oito irmãos. Na sua fazenda, de nome Peráu, plantava cana, fabricava açúcar, tinha um plantio de café, poucos escravos e algum gado a quem dava nome a cada cabeça. Teve duas filhas e é uma grande incógnita se eram filhas ou não de alguma escrava.

A tese apresentada por Clímaco no tribunal que tentava a absolvição de todos os 36 negros presos era de que a responsabilidade pelo movimento era exclusivamente do Frei Gregório que havia prometido a liberdade se os escravos o ajudassem a construir a igreja de São José, acusação que o frade se eximia. O Frade teve como pena sua expulsão da Província para em seguida ser enviado para serviços de catequese entre os índios do Amazonas, trabalho que era a razão de ele ter buscado ser missionário no Brasil. Lá, faleceu já idoso poucos anos depois, mas ficou registrado por alguns visitantes estrangeiros que ele era um importante mercador de crianças indígenas para comerciantes da região do Alto Rio Negro. Ou seja, vendia escravos infantis.

Clímaco foi derrotado pelo ódio e pelo medo dos brancos escravocratas e tomou uma decisão que mais o exilou da civilização: financiou a fuga dos seus escravos que se embrenharam pelas matas de Mangaraí e escaparam das buscas dos capitães do mato. Viveram e morreram de doenças tropicais, mas sempre auxiliados por Clímaco.

O relato das atrocidades cometidas contra os negros, a maioria crioulos, ou seja, eram nascidos no Brasil, além das torturas, maus tratos, açoites e execuções sumárias, mostra também casos de suicídio para abreviar a pena de viver nas condições de encarceramento na época, pior ainda que os dias de hoje. Consta que um deles, internado na Santa Casa de Misericórdia, após contrair tuberculose fruto das 500 chibatadas a que foi apenado, raspou com os dentes a cal a cobria as paredes do hospital no intuito de tirar sua própria vida. Pois vida já não mais havia pela frente.

A história da Insurreição do Queimado é rica em elementos dramáticos e vazios não devidamente esclarecidos que permitem releituras a favor de quem as conta. Na exaltação ocorrida este ano não foi diferente. Nos discursos que se alongaram por toda a manhã ensolarada do domingo muitos equívocos históricos foram difundidos como verdade, mas não empanaram a necessária rememoração dos eventos funestos de 1849 e 1850, quando dois dos cinco condenados à forca foram levados ao patíbulo, João da Viúva Monteiro e Chico Prego.

O evento de 2010, que comemorou 161 anos da insurreição, foi uma manifestação religiosa, com ritos católicos, umbandistas e do candomblé, além de apresentações de banda de congo, capoeira e maculelê. As fotos que acompanham o texto são a reprodução deste dia.


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